Por Douglas Nunes
Olá meus amigos leitores. Esta semana estamos publicando um pequeno trecho do livro “O mais longo de meus dias”, do capítulo “Remotas Perseguições”, da obra publicada em 2009 – O livro é um romance baseado em fatos reais que depois inspirou o filme “Intolerância e Paixão” de 2012.
O trecho em questão conta a história da Cruzada dos Reis da França e da Inglaterra e a guerra contra os muçulmanos, chamados Sarracenos, do líder árabe Saladino, no ano de 1187, data em que Jerusalém foi invadida pelos árabes. E os lances e aventuras de um jovem francês que acompanhou a Cruzada somente pela comida, uma forma desesperada de se manter vivo nos horrores da Idade Média, onde não havia ordem ou princípio algum que definisse as Leis, a não ser a Lei do Talião, seguida rigorosamente, pois estava exposto na Bíblia. Com exceção desta, os crimes eram freqüentes, sem qualquer motivo… Viver naqueles tempos era perigoso demais.
A leitura invoca um passado distante. Se são reais ou não, não importa. Importa que a imaginação corra solta e cada um tenha as suas conclusões.
Eis a história:
Meu nome é Jean Florence Baptiste, eu tinha 33 anos no período desses acontecimentos, mas devido a tantos sofrimentos, fome, doenças e a miséria, a minha aparência é de 50 anos. Nasci em Paris, capital dos francos no ano da era cristã de 1162. Faz seis anos que estou preso às correntes nos subterrâneos da masmorra do Castelo de Clemont próximo a Paris. Os motivos da minha prisão? Eu as desconheço! Fui acusado de conspiração, assim como meus pais. Mas o meu pai teve um atenuante: foi morto imediatamente enquanto que eu sofro ano após ano, terrivelmente!
A tortura da fome e da sede, do frio intenso e das grossas correntes que me prendem às paredes, nada seria se eu soubesse realmente os motivos do meu encarceramente, no entanto, aqui estou preso ao fluxo do tempo e sempre a mesma pergunta: — “Até quando suportarei essa tortura? O que fiz para assim merecer? Porque Deus permite que eu sofra? São essas as perguntas que faço sem obter respostas, apenas o silêncio que não queria ouvir. Ouvia o nada e o nada zombava de mim.
Nos raros momentos de contato que tive com meus algozes, procurava falar-lhes, suplicava-lhes por migalhas de pão e água. Mas as gargalhadas eram as respostas. Um dia, um deles respondeu-me com pilhéria: “— Pra que quer comida se amanhã a esta hora serás cinzas… Tu serás queimado vivo na praça e todo o povo assistirá”. E gargalhavam.
Minhas forças minguavam. Já não as tinha para levantar a cabeça e olhar o céu pela abertura no alto da torre… Eu agonizava… Aos poucos as forças me abandonavam…
Na alienação da aproximação da morte, as sombras visitavam a minha mente e na memória, as lembranças do passado…
Tudo começou quando:
Meu pai era italiano de Florença e conheceu minha mãe quando em uma de suas viagens como negociante de peças de algodão e com ela se casou em fins do ano de 1160 e foram viver nos arredores de Paris. Ele se chamava Jean Baptiste, homem simples e trabalhador, vivia do transporte de pedras para a construção de grandes castelos dos nobres que alijavam protegerem-se de possíveis ataques dos mouros que ainda rondavam toda a Europa.
Um dia, quando eu tinha doze anos de idade, soubemos que meu pai havia sido acusado de conspiração e por isso, sem julgamento algum ele foi enforcado em praça pública. Assisti a cena dantesca em que o corpo de meu pai girava e se balançava pendurado sob o olhar e os gritos da turba que de punhos levantados gritavam: “morte ao traidor”. Pude perceber a presença de alguns de seus amigos que até um dia antes beberam com ele e abraçados saíram do albergue em busca de suas mulheres.
A minha mãe também foi presa e torturada durante dias. Ela foi estuprada, vilipendiada, açoitada, amarrada e entregue aos verdugos impiedosos. Queimaram-lhe os seus pés. Tudo isso para que ela confessasse um crime, o crime de ser a mulher de um inocente.
Minha mãe foi uma ave abatida, caída no bosque entre as flores da maldição. Poucos dias depois de sua libertação, começou a definhar e a agonizar… Estávamos eu e Elien, minha irmã de 9 anos, quando minha mãe morreu vomitando sangue. Havia os que diziam que o demônio queria possuí-la, por isso ela vomitara sangue. No momento extremo, porém, nenhum deles se aproximou, a não ser para incendiar a pequena casa construída pelo meu pai. Ficamos jogados na rua, desamparados na busca freqüente do alimento e dormindo onde desce lugar.
Trinta dias sob o frio, a chuva, a fome. Elien tossia e sangrava e chamava pela mãe. Certo dia Elien desapareceu. Busquei-a em todos os cantos de Paris. O seu corpo foi encontrado no bosque dias depois, parcialmente enterrado sob uma grande quantidade de folhas. Decapitada e dilacerada pelos animais da floresta, todavia, não escondia os sinais da violência humana.
Durante anos vaguei pelas ruas de Paris dormindo nas ruelas e até nas pocilgas, onde houvesse um alimento qualquer. Somente os cães e os porcos se davam ao luxo de comer, enquanto eu comia os restos dos restos e me sentia melhor ao lado dos animais que saciavam a sede e a fome, enquanto os homens ansiavam o assalto e o saque. Eu, por mim, ansiava tornar-me um animal.
Um dia, nobres cavaleiros montados em suntuosos cavalos com um grande aparato, carregando estandartes com o sinal da cruz do Cristo, percorreram as ruas da cidade anunciando que iria ocorrer um novo chamamento para a humanidade e que todos os homens se livrariam do fogo impiedoso do inferno. Um novo tempo para todos os homens, anunciavam eles. Todas as pessoas deveriam comparecer para ouvirem a proclamação do Papa Alexandre III. Por meio de uma Bula, dirigirá à nobreza francesa e ao Rei Felipe II, uma expedição que foi pregada por São Bernardo de Claraval, na recém construída igreja da abadia beneditina de Vézelay, no norte de França, importante local de peregrinação devido às relíquias de Santa Maria Madalena. O Rei da França Felipe II, de acordo com a vontade de São Bernardo, colocou-se à frente do movimento para ouvir o papa e anunciar novos tempos para todos.
Imediatamente o povo começou a se movimentar em direção à Paris onde o papa Alexandre III anunciaria um novo paraíso feito de muita comida para todos. Naquela audiência havia muitos bispos e também a presença dos nobres e cavaleiros. No discurso, o papa tentou convencer o povo a embarcar numa missão que parecia impossível: cruzar três mil quilômetros até a cidade santa de Jerusalém e expulsar os muçulmanos que dominavam o lugar desde 638. Do alto de onde ele estava, ouvi claramente prometer: “Quem lutar contra os infiéis ganhará perdão de todos os pecados e lugar garantido no paraíso”.
A multidão eufórica gritava: “Essa é a vontade de Deus. Deus está conosco”.
Impressionado com as palavras do papa, também comecei a gritar: “Morte aos pecadores”. “Viva o papa, viva o Cristo”.
Nessa época eu tinha a idade de 18 anos. Jovem, magro, quase esquelético, mas suficientemente apto a aceitar aquelas promessas consagradoras. O juramento de remissão dos pecados, aliada à chance de poder comer, atraiam grande multidão e muitos pensavam em pilhar os tesouros lendários. Começaram-se os ajuntamentos nos campos em volta de Paris. Eram homens de todas as idades, velhos, mulheres, crianças que se preparavam para a grande aventura. Uns amarravam pedaços de madeira na cintura, ao molde de espada, outros fabricavam armas rústicas e outros se armavam de paus e pedras. Todos estavam como que dominados por uma força desconhecida que os impulsionavam para a longa jornada, cientes de que libertariam a Palestina do jugo dos infiéis muçulmanos.
Iniciou-se a caminhada sem uma ordem preestabelecida ou uma organização que pudesse ter resultados. Tudo se fazia sem uma determinação superior. Uma grande massa de pessoas se movimentando e deixando para trás suas famílias, amigos e o lugar que nasceram e cresceram. Eram milhares de meninos que corriam entre os cavalos e as carroças em busca de aventura. Outros milhares de jovens adolescentes que procuravam imitar os soldados a cavalo vestindo-se como eles, imitando a pintura da cruz do Cristo no peito e o estandarte erguido com a mesma cruz. Tudo na esperança de conquistar uma posição entre os cavaleiros e com eles um pedaço de pão.
No começo tudo parecia se tornar uma simples aventura; A distribuição de pães era o suficiente para brindar a todos o grito de vitória, tendo sempre o nome de Jesus à frente. Era a vontade de Deus e por isso estávamos confiantes. Deus estava conosco, assim dissera o padre e ele estava com a verdade. Diziam os padres, durante a caminhada, que quanto mais muçulmanos matássemos, mais perdões receberiam. Não seria pecado matar. Era necessário livrar a Terra Santa do jugo dos infiéis e Deus estava do nosso lado.
Não estávamos na metade da jornada e quase duzentos daqueles pequenos meninos já haviam desistido e/ou mortos pela fome, frio ou cansaço. Seus corpos ficavam pelo caminho… Mas a grande maioria continua a caminhada, sustentada nos saques por onde passavam. Nas longas caminhadas, dias e dias sem comida, os meninos roubavam as carroças que seguiam vagarosas… À noite, no acampamento ao som de tambores e alaúdes, quando todos se distraiam dançando ou cantando, um dos rapazes foi pego roubando uma carroça. Ali mesmo, naquela mesma noite foi julgado e condenado ao enforcamento. Depois desse episódio, todos pensavam duas vezes antes de tomar qualquer atitude mais arriscada.
Dois ou três meses depois do início da jornada, já na Itália, começamos a nos deparar com dezenas de cadáveres de homens, mulheres e crianças mortas pelo fio da espada. Centenas de casas de camponeses eram saqueadas e depois incendiadas e seus ocupantes enforcados somente porque falavam outras línguas e não o francês.
Depois de muitos reveses em meses de jornada, de lutas e conquistas, entramos em Jerusalém, mas não encontramos soldados defendendo a cidade. O que havia eram velhos, homens, mulheres e crianças, como sempre, inocentes que não ofereciam perigo; muitos doentes e famintos e outros tantos inocentes que se trancavam apavorados em suas casas abraçando seus filhos e outros se encolhendo nas paredes de pedra das casas. Outros tantos, repetindo um gesto ancestral, reuniam-se nas sinagogas para orar.
Os invasores bloqueavam as saídas, jogavam lenha e ateavam fogo à sinagoga. Os judeus que não morriam queimados eram mortos na rua.
Quando vi o extermínio, milhares de pessoas, as mulheres sendo estupradas e depois mortas, os saques nas mesquitas e casas… As ruas se transformando numa imensa poça de sangue, gritei que parassem. “— Deus não queria isso, devemos matar os muçulmanos e não inocentes” “Nossos inimigos não eram aqueles.” “Nossos inimigos estavam nos campos, nos aguardando”.
Meus gritos não eram ouvidos. Os que vinham de trás ignoravam-me e de espada em punho seguiam à frente desfechando golpes mortais. Ouviam-se gritos desesperados de misericórdia e o som abafado dos baques da espada. Mas foi com desespero que vi ao longe uma criança que muito se parecia com Elien, minha irmã inocente e indefesa. Ela escondia o rosto com as mãos e seria morta por um dos nossos. Corri de arma em punho para salvá-la e ataquei meu companheiro e o matei pelas costas. Os poucos que ali estavam comigo, cercaram-me e logo senti uma forte pancada na cabeça que me fez ir ao chão.
Despertei do golpe violento quando era rastejado por alguns dos nossos para o campo a fim de ser entregue a Guy de Lusignan, então governador cristão de Jerusalém, nas cercanias da cidade. Quando de repente ouvimos todos, os gritos de morte dos sarracenos em número superior numa correria louca sobre nós. Todos correram enquanto que fui deixado ferido para trás. Fui feito prisioneiro uma segunda vez e levado amarrado em um cavalo até a presença de um homem que se transformaria no herói da reação muçulmana. Era um soldado curdo chamado Salah Al-Dim, conhecido no ocidente como Saladino.
“Chegara o momento supremo da minha vida” – pensei eu — “Que Deus esteja comigo “– Em sua cintura uma grande lâmina curvada e larga, dava-lhe o aspecto de um assassino frio e cruel. Mas quis o destino que eu vivesse. Vivesse para levar uma mensagem aos barões do ocidente e fui libertado. Um dos soldados de Saladino contara a ele o motivo de minha prisão pelos meus próprios companheiros… Eu defendera uma criança da morte matando seu algoz. Saladino parecia reconhecer em mim um homem digno, por isso me destinara como mensageiro.
Quando entreguei a mensagem ao barão que comandava as tropas dos francos, fui preso e jogado em uma prisão. A vitória contra os francos e a ascensão de Saladino reforçou a idéia de que eu participara da traição e por isso fui conduzido ao ocidente.
A viagem de volta foi lenta e demorada. Levou de oito ou dez meses devido as fortes nevascas e as tempestades de neve que assolavam toda a Europa e Ásia. Possantes correntes prendiam-me na carroça pelo pescoço que era puxada por dois cavalos; Outras vezes era arrastado, preso aos cavalos, descalço e quase nu. Alimentavam-me de restos e só a água da chuva matava-me a sede, ou morreria ali mesmo de frio. Foi suportando ainda os xingamentos e as pontas das lanças afiadas que consegui com ajuda de um pobre homem, que também se encontrava preso, mas tinha certa liberdade, dava-me pão e carne durante as paradas. No entanto, sentia a morte próximo a mim… Meu destino estava selado e já pedia a Deus a minha extinção.
Chegando em Paris, depois de um ano preso, fui levado perante os bispos da Igreja e fui acusado de conspiração e traição contra a Cruzada e contra Deus devido a mensagem de Saladino que ordenava entregar a cidade ou todos morreriam e Deus deixaria de existir. Fui condenado à morte sem qualquer apelação ou que ouvisse alguém em minha defesa. Não havia quem me defendesse, quem ousaria?
E aqui estou, há seis anos, esquecido, extenuado, morto, o corpo, nos subterrâneos da masmorra do Castelo de Clemont. Amanhã, logo nas primeiras horas do dia, serei entregue aos verdugos da Praça de Paris onde serei consumido pelo fogo. Assim prescrevia as leis vigentes… Eu era considerado um traidor e a morte não seria um tormento, mas um alívio para a minha alma. A libertação da alma através do fogo purificador.
Quando os primeiros raios solares despontaram no horizonte, mostrando os telhados das primeiras casas, nas proximidades da prisão, um vulto negro penetrou na cela rústica, coberta de terra e sem dificuldades livrou-me das grossas correntes. Sem forças para falar, deixei-me ser conduzido. Logo tudo terminaria e o meu sofrimento cessaria. Eu estava prestes a entregar minha alma a Deus e por isso, me deixei ser levado e até perdoaria meus algozes. Em seguida outros vultos negros ergueram-me do chão e fui levado dali para além das muralhas do grandioso castelo.
Ao sentir o odor das plantas e a suave aragem matinal entrando pelas narinas até os pulmões, uma nova esperança de vida inundou-me. Respirei fundo o ar puro da floresta com seus perfumes. Percebi pelo movimento que aquele não era o caminho para a praça central onde os condenados eram queimados vivos. Chegamos então depois de longa caminhada, a um casebre de palha onde outras pessoas se encontravam. Ouvi vozes estranhas como a que falavam na Palestina e pensava estar em outra dimensão de vida. Ouvia também líquidos, como o marulhar das águas de um riacho entre as pedras e seixos do local.
Deitaram-me em uma cama igualmente de palha e deram-me água. Fazia anos que não bebia água pura, cristalina e fria e uma emoção muito grande tomou conta de mim e ainda ouvindo a água do riacho bem próximo, adormeci profundamente.
Dois dias depois despertei do sono pesado. Deram-me pão com azeite e fui informado de que meus salvadores eram os meus inimigos da Palestina, o muçulmano curdo chamado Salah Al-Din, o Saladino em pessoa viera salvar-me da morte. Soubera ele da acusação injusta pela Igreja e considerou que não poderia permitir tal situação.
“Os verdadeiros reis não se matam uns aos outros”. Essas foram as suas palavras ditas a Guy de Lusignan, então governante cristão em Jerusalém, recém tomada pelos muçulmanos, e que agora se comparava ao grande guerreiro e líder que ele era.
Depois da longa viagem da volta a Damasco na Síria, Saladino foi acometido de uma febre e morreu. Estava com 55 anos. Parte de sua herança em dinheiro foi doada à cidade e ao seu povo. Antes de sua morte, Saladino recebeu-me no seu leito de morte e parte de seus bens me foram repassados. Um verdadeiro tesouro. Minha missão: mostrar ao mundo quem foi Saladino, um homem justo, humano, generoso, humilde e acima de tudo, fiel aos seus deveres como chefe árabe. O governo de Saladino foi o mais popular da história, capaz de realizar proezas como o de livrar da morte um estranho em uma terra distante.