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Confira a crônica “Sonhos da Meia-Noite” de Douglas Nunes

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Olá meus amigos leitores. Estamos publicando esta semana a crônica “Sonhos da Meia-Noite”, que serviu como inspiração para o filme “Vida e Razão”, que teve sua estréia em Março deste ano.

No início do filme as falas da atriz Pâmela Carvalho, faz um breve relato do Roteiro do filme, baseada naquilo que todos nós sentimos quando dormimos: Os sonhos. Em resumo, diz o “script”:  “O resultado imediato do sono é o sonho. É uma necessidade que o corpo experimenta todos os dias para o descanso físico, mas nem sempre é repouso para o espírito…”

SONHOS DA MEIA-NOITE
Douglas Nunes

Esta noite tive um sonho aterrador. A bruma negra da noite cobria toda a Terra; Via nas serrarias, campos, rios e lagos a escuridão se formando e a caligem negra singrando as estrelas. Cá abaixo, sobre a cidade adormecida, surgiam por entre os telhados das casas, faixas misteriosas, vultos sinistros em alguns e, em outros, fachos que se elevavam na atmosfera, deixando um fino rastro luminoso… No meio à solidão, o brilho áptero dos astros, rutilava, apagando aos poucos na imensidão.

Toda a cidade permanecia adormecida e a umbrosa turgescente não assistiu o desenvolver das cenas noturnas. Era como se não existisse, na hora avançada, uma essência desconhecida por mim, que volitava sob a atmosfera cálida, pairando sobre as vias, avenidas, ruas e em toda a paisagem da vila, provocando aos profanos visitadores do silêncio cenas inesperadas.

Foi quando subitamente alcei vôo sem ao menos perceber e o medo apossou-se de mim. Tentei agarrar-me em algo, mas não consegui. Era como se a matéria não existisse passando por entre meus dedos.

Volitei conjuntamente por entre o casario penetrando o forro adentro e subindo mais e mais, perpassando desequilibrado, sem o apoio para os pés que cresciam lentamente por entre o madeiro da casa imensa. Mas de repente, oh! Surpresa! Atravessara por entre a matéria firme do grande telhado. Seguindo adiante pelas ruas e alamedas desertas, e logo fazia parte daquele tétrico cortejo, contemplando cada movimento, atraído por uma força descomunal numa determinada direção. Percebi aqui e ali a presença arrepiante de entes com olhos e luzes de lampejos sinóticos que fitava cada um dos lampejos que se aproximava. Comigo também não foi diferente. Olhos áureos amarelados fitavam-me como a me perscrutar o íntimo.

Estaria eu realmente sonhando ou tudo aquilo seria os lampejos da morte? Flutuaria o espírito por entre copas das árvores e moradas da Terra ou estaria entre o bulcão abiótico e mefítico do sepulcro?

Sem respostas, continuei a me arrastar pela força invisível em direção desconhecida. Mesmo contra meus desejos de reter aquela insólita viagem, perseguia-me a força inexpugnável, condicionando-me a seguir em frente, em conjunto com outros seres, que agora, apresentavam-se tétricas na bruma escura.

— Para onde seguia? Que força me arrasta e me carrega sôfrego?

Aquela região não me era conhecida. Porém, parecia tratar-se de um sítio afastado, entre colinas e rios até um bosque coberto de jardins circulares e estreitos, rodeados de arbúsculos despidas de folhas e flores. O caminho gramado e cuidadosamente aparado, com tredécimos portões dourados, conduzia a outros portões igualmente dourados e cercados de arbustos.

Sentei como que aliviado os pés no lajeado e pude dar alguns passos em direção ao imenso portal e ante a minha surpresa em simplesmente atravessá-lo de encontro a imenso salão. Paro um instante. Coração opresso, recordando aos poucos meus tempos de meninice. Aquela imagem colhia-me na memória. Ali nascera e ali crescera e vivera

até os meus nove ou dez anos. Mas também naquele local faleceram meus pais em terrível crime cometido em circunstâncias misteriosas ainda hoje indecifráveis.

No centro do imenso salão, via-se um esquife em madeira trabalhada e nela estendido hirto, pois já há horas ali se achava os restos mortais de um homem. A epítese daquele drama mal começara. Percebiam-se minúsculos seres bióticos, helmintos e ásperos como o umbroso testamento da morte… As emanações mefíticas do corpo leucêmico em decomposição reclamavam sepultura.

Foi quando dos escombros do corpo tétrico, a fervida emulação dos germens no alimento voraz, transformava em louca fantasia em recomeço de um novo drama. Vi-me obrigado a seguir os vapores quase diabólicos que se elevavam na atmosfera. Seguia-as, mas não por que quisesse, mas porque força estranha e descomunal me seguia como um caminho sem volta. Execrava-me tal situação, mas a esse sortilégio me submetia. Era o domínio do invisível que me influenciava

Logo transpomos os umbrais do casario alcançando a rua deserta onde o contato do frescor da noite ao meu corpo se enrijecera e um frio selara a visão desde então paralisada.

Logo se achegamos a um grande campo. Cruzes se enfileiravam disformes e caídas entre os portais e as imagens aladas em sepulturas alheias e tristes. Pequenos grupos em alvas vestimentas se revezavam em orações mais elevadas e outras baixas de anseio. Ao lado, uma multidão quase infinita se apresentava. Eram milhares numa visão transcendental, onde todos jaziam.

— “Talvez fosse Cérbero que vinha para a guarda dos portais do campo ou do falecido” – pensei: — “Mas que milagre da vida se faz tão presente se não há a Vida e a Razão para se crer?” Era a síntese que se formara no meu cérebro candente, ignorando que a Vida tem uma Razão de ser: O Conhecimento de um Ser Superior a tudo e a todos.

Quando me aproximei todos se enfileiravam fitando-me os enormes olhos ígneos injetados de ódio, outros na calma pungente, sorriam, apontando o esquife baixado à campa. A lápide branca ao lado, já assentada continha um título apenas, com as inscrições em letras pequenas, quase disformes que… Mas Oh! Que cáustica surpresa se me apresenta e me paralisa a alma quando leio a lápide em letras negras, o meu nome nela incrustada: – O falecido sou eu!

Olhos arregalados, sem acreditar no que via e dizia:

— Não, não, não sou eu. Eu aqui estou, vivo!

Mas ao meu lado, alma cintilando de alegria, dizia:

— Morte, onde está a tua vitória?

Olhei a quem me falara e deslumbrado caí em prantos, reconhecendo aquela a quem na Terra repassava como minha protetora. A minha mãe.

As lágrimas deram lugar a um largo sorriso e um longo e benigno abraço.

—Tua jornada apenas começa. A morte não é o fim. Teu corpo é entregue ao laboratório da natureza, mas teu espírito deve ascender os espaços. Vem!