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Retratos da fé: a importância das benzedeiras para o cenário nordestino

Por Mikael Lopes

O desejo e processo da cura, na maioria das vezes, ocorre devido a duas coisas: tratamento médico e fé. Se, por um lado, a medicina se fortalece cada vez mais, a prática do curandeirismo através de benzedeiras desaparece aos poucos.

Essa prática é realizada, em sua maioria, por mulheres idosas que, com sua fervorosa religiosidade, curam quem busca o seu dom, como Maria Celeste, de 82 anos. Ela é uma das rezadeiras mais velhas da cidade de Bocaina, Piauí. Maria Celeste realiza as rezas há quase três décadas, mas nem sempre acreditou na restauração da saúde de formas alternativas.

“Eu não acreditava nem em reza, tive 12 filhos, morreu 7 e eu não acreditava em reza, acreditava só em médico. Uma vez, levei meu filho pra cidade de Icó, passei 8 dias no hospital com ele e o médico falou ‘olha, volte pra casa com esse menino porque ele não tem doença de médico’, voltei pra minha casa e minha tia, que  era rezadeira, disse: ‘é, minha filha, você não acredita em reza não, levou seu filho para o médico, mas quem vai curar ele agora sou eu’. Ela curou meu filho Evangelista. Daí pra cá, desde aquele tempo, fiquei acreditando em reza”, pontuou ela.

Maria Celeste é procurada por pessoas da cidade de Bocaina e municípios vizinhos, que apresentam principalmente “quebrante” e “mau olhado”, como é popularmente conhecido. Mas, como cada rezadeira tem seus métodos, ela atende somente crianças. Ela explica que não se sentia bem curando adultos e recebeu um conselho do seu guia espiritual para parar.

“É de quebrante, de olhado, de vento caído, de inveja, de ambição, de mal desejo, de maus pensamentos, tudo isso eu rezo, tirando tudo isso aí. Eu deixei de rezar em adulto porque tinha que rezar de tudo, do que tivesse, de alguma coisa feita, de inveja… eu tinha que desmanchar tudo isso em nome do Senhor. Meu guia disse que não tinha condições de seguir isso, não. Hoje eu só rezo em criança, a não ser uma filha minha, vizinha próxima”, disse Maria Celeste.

Quem chega na casa de Maria Celeste, ela atende com satisfação. Além de receber, cria laços de afeto com as crianças que atende. O pequeno João Miguel, de 5 anos, frequenta a residência dela desde recém-nascido. Sua mãe, Ednalva Ana, conta que tem esse costume devido ter sido ensinada sobre a importância da reza para o desenvolvimento da criança. Para Ednalva, é necessário confiar na rezadeira que procura:

“Em primeiro lugar, a gente tem que acreditar. Porque se a gente não acreditar na reza e na fé que ela tem da cura, não funciona. Eu acho que tem de ser dos dois lados, tanto a rezadeira, como a pessoa que leva a sua criança… Eu acredito e sempre acreditei, é tão provável que faz 5 anos que levo ele. Eu creio muito na reza dela (se referindo a Maria Celeste)”, comenta Ednalva.

DESAFIOS

Grande parte dessas benzedeiras desenvolveram e aprenderam o dom de cura através da oralidade. Por não ser algo que tem como base o conhecimento escrito, o ritual de cura é resultado da combinação de gestos, voz e palavras. Maria Celeste, por exemplo, é analfabeta e as orações ditas por ela não são decoradas, vindo da ação espiritual durante a reza, segundo ela.

“Minha reza é essa. Eu não sei ler, eu não leio nenhuma oração de caderno, a oração é aquele Senhor iluminando, que manda algum guia, uma luz. Quando eu estou rezando, sei de tudo; quando terminei de rezar, não sei o que rezei, acredita? Só as minhas orações antes de dormir que eu sei”, pontua a rezadeira.

A falta da documentação pode contribuir para o apagamento histórico de atividades culturais que têm como base a oralidade, como o curandeirismo. Algumas rezadeiras estão se afastando da benzedura devido à idade. Para Jackson Macêdo, historiador e mestre em História do Brasil, a memória e a documentação são as principais medidas para manter a tradição viva:

Jackson Macedo

“A transmissão da tradição também tem a ver com a memória. Essa transmissão é feita com base nas vivências daquelas pessoas que estão incluídas nesse processo. Atualmente, surge uma necessidade muito grande de que se documente. Por isso têm aparecido muitos trabalhos relacionados a esse tema, para tentar documentar, para que esse patrimônio imaterial não se perca. Quando não se documentam essas tradições, elas tendem a se perder”, afirma o historiador.

Mas o apagamento não é resultado somente da falta da documentação. A carência de informação sobre como funciona o trabalho espiritual das benzedeiras, confundido com práticas prejudiciais, junto com o desinteresse de pessoas mais jovens em visitá-las, também afeta a continuidade da ação, como explica o historiador:

“Alguns fatores contribuem para o desaparecimento, como a dificuldade de alguns jovens se amarrarem a determinadas crenças, porque não é só uma questão de ir na rezadeira. Existem diversas outras práticas culturais que vêm desaparecendo porque os jovens de hoje em dia não querem dar continuidade. No caso da rezadeira, uma das coisas que pesa é a questão da associação de tradições profanas”, declara Jackson Macêdo.

SINCRETISMO RELIGIOSO

Historicamente, a prática da cura feita pelas rezadeiras se inicia desde o período colonial e se adapta conforme os anos. Os conhecimentos e atos são resultado da diversidade religiosa presente no Brasil, tendo contribuições indígenas, africanas e influências do catolicismo. Por conta dessa variedade religiosa, o preconceito ainda é presente no meio do curandeirismo. Jackson Macêdo comenta o surgimento do movimento relacionado ao catolicismo popular:

“Muita gente não tem essa consciência de que as rezadeiras são resultado do sincretismo religioso, que leva características de raízes africanas e indígenas. No passado, a gente sabe que a Igreja Católica era a religião hegemônica que dominava a fé. E o surgimento dela está ligado ao que a gente chama de catolicismo popular, não é o catolicismo institucional”, diz ele.

Para Maria Celeste, nenhuma das vezes que ela abençoou e curou quem lhe procurou teria sido possível sem a intervenção de Deus, onde ela é somente um instrumento das graças divinas.

“Curo sim, com os poderes de Deus, com o nome do Senhor, eu vou rezar, mas eu peço a Ele. Eu não tenho sabedoria de rezar sem Ele. Eu sou quem peço a Ele pra eu poder dar para aquela pessoa”, relata.

Relatos como o de Maria Celeste destacam a resistência e importância das benzedeiras e rezadeiras em cidades interioranas do Nordeste. A preservação e valorização dessas práticas é uma forma de contribuir para a diversidade de patrimônios culturais imateriais do país, construindo memórias individuais e coletivas através da fé.

“A prática das rezadeiras contribui para a diversidade cultural, para que a gente não se desconecte das nossas raízes e tenha consciência de que o Brasil é um país multicultural. É muito importante que essas práticas continuem existindo e que elas sejam documentadas, para que as pessoas não percam suas conexões com suas raízes. Um povo que não tem memória é um povo condenado a cometer os mesmos erros do passado. Um povo que tem memória pode valorizar e reconstruir algumas coisas que ficaram no passado”, finaliza Jackson.