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Três a cada 10 mulheres grávidas por estupro desistem do aborto legal no Piauí

No Piauí, três a cada dez mulheres que engravidam em decorrência de um ato tão brutal quanto o estupro optam por levar a gravidez adiante. Em outras palavras, elas desistem do aborto legal e protegido por lei. Dados do Serviço de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS) apontam que, em 2023, das 25 vítimas de estupro que engravidaram, 8 decidiram não prosseguir com o aborto legal.

Embora o número de casos registrados seja preocupante, a real incidência de gravidez resultante de violência sexual pode ser ainda maior devido à subnotificação. Em 2023, quase mil mulheres vítimas de violência sexual foram assistidas em todo o Piauí, conforme o SAMVVIS. Teresina registrou o maior número de atendimentos, com 536 casos, seguida por Parnaíba com 162 e Picos com 109.

No Brasil, a legislação atualmente permite o aborto em três circunstâncias específicas: em casos de estupro, quando a gravidez representa risco à vida da mulher e em situações de anencefalia fetal. A legalização do aborto em casos de fetos anencéfalos foi estabelecida em 2012, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

A decisão de levar adiante uma gravidez oriunda de um trauma profundo, longe de ser apenas uma questão legal ou médica, está imersa em uma complexidade de crenças pessoais, influências culturais e fatores sociais. A psicóloga Ianny Luizy explica que nossa identidade é moldada tanto pela sociedade em que vivemos quanto pela nossa família. Estes aspectos podem influenciar as decisões das mulheres, especialmente em contextos religiosos ou culturais que valorizam a maternidade.

“Muitas mulheres enfrentam um dilema ao decidir sobre a continuidade de uma gravidez fruto de violência, especialmente quando influenciadas por crenças religiosas ou valores familiares. Algumas podem optar por ter o bebê, enquanto outras escolhem não prosseguir com a gravidez. Essas decisões são pessoais e variam de caso para caso”, aponta a psicóloga.

Acredito que, muitas vezes, as decisões dessas mulheres são influenciadas por questões religiosas e sociais”

Além disso, é comum que essas mulheres sintam culpa ou medo devido ao possível julgamento da sociedade. Isso se deve, em parte, à tendência cultural de culpabilizar a vítima, o que intensifica os sentimentos de vergonha nas mulheres que enfrentam situações de violência sexual. “Nós mulheres carregamos culpa desde o nosso nascimento. O medo e a culpa podem ser os principais motivos que levam essas vitimas de estupro a desisiterem do abiorto legal. Além disso, muitas encaram a gravidez como uma oportunidade dada, levando em consideração que outras mulheres não podem ter filhos”, comenta.

A psicóloga aborda ainda a questão do “mito do instinto materno”, desafiando a ideia aceita de que todas as mulheres naturalmente possuem um instinto para a maternidade. Ela argumenta que essa noção é uma construção social que não corresponde à realidade. Esse conceito pode levar a expectativas irrealistas e a uma pressão social para que as mulheres amem seus filhos incondicionalmente, independentemente das circunstâncias em que foram concebidos.

“O instinto materno não existe, foi algo imposto pela religião. Em casos de gravidez resultante de estupro, por exemplo, a ideia de que o instinto materno fará a mulher amar o bebê pode ser prejudicial. Futuramente essa vítima pode olhar para o bebê e sempre lembrar do momento traumático vivido, o que pode causar danos psicológicos tanto para ela quanto para a criança”, comenta Ianny Luizy.

E quando a mãe de uma criança ainda é uma criança?

Sofrer violência sexual é uma experiência dolorosa, desafiadora e traumática para qualquer mulher. Essa situação se torna ainda mais complexa e perturbadora quando envolve crianças e adolescentes, vítimas de estupro de vulnerável. No Piauí, casos dessa natureza estão vindo cada vez mais à tona.

No final do ano passado, uma menina de 12 anos engravidou após ser estuprada pelo padrasto em São Raimundo Nonato. A família descobriu quando ela já estava com três meses de gestação e passou a buscar, junto à justiça, autorização para realizar o aborto legal, que foi feito no inicio deste mês.

Em 2023, uma garota de 12 anos vítima de estupro no Piauí deu à luz pela segunda vez. Sua primeira gravidez ocorreu aos dez anos, após ser violentada por um primo. Na epóca, sua mãe negou o aborto. Um ano depois, ela foi novamente vítima de abuso sexual, desta vez pelo tio, e engravidou novamente. Apesar de uma decisão judicial inicial permitindo o aborto, a família da menina mudou de ideia e decidiu que daria o bebê para adoção.

A socióloga Marcela Castro comenta a complexidade de casos que envolvem crianças e adolescentes quando falamos de aborto legal. Segundo ela, essas meninas ainda não possuem maturidade e, às vezes, informações suficientes para tomar decisões por conta própria, tornando-se dependentes das escolhas feitas pelos pais ou responsáveis.

“Quando a vítima de violência sexual é uma criança ou adolescente, a situação se torna ainda mais delicada. Geralmente, são os pais ou responsáveis que acabam tomando essas decisões. Além disso, a sociedade frequentemente julga essas situações de forma dura e crítica, o que complica ainda mais o cenário”, destaca a socióloga.

Desafios no acesso ao aborto legal

Apesar do aborto ser legal nessas situações especificas, frequentemente há obstáculos impostos por profissionais da Justiça e da saúde. Alguns casos mostram que autoridades judiciais tentam impedir mulheres de realizar o procedimento. Além disso, há profissionais de saúde que, por vezes, desencorajam o aborto, seja por motivos pessoais, religiosos ou outros.

Recentemente, um caso envolvendo uma médica e um aborto legal gerou polêmica nas redes sociais. A médica publicou comentários sobre o procedimento de interrupção de gravidez realizado na menina vítima de estupro em São Raimundo Nonato. Na postagem, ela mencionou a idade da menina e expressou seu conflito interno como cristã, afirmando que “um crime não anula o outro”. Após a repercussão negativa, a médica removeu a publicação original.

“Como ser humano, como profissional, como cristã, me questionei. Não posso dizer que achei tudo de boa e que foi super tranquilo. Foi pesado. Chorei escondida, pensando em todas as mazelas envolvidas: uma menina vítima de um crime, uma gestação não desejada, um bebê morto que foi pro lixo”, disse a médica nas redes sociais.

A atitude da médica foi fortemente criticada por membros da Frente de Mulheres Contra o Feminicídio do Piauí. O órgão ressaltou que profissionais de saúde devem cumprir a lei sem deixar que crenças pessoais interfiram em suas responsabilidades profissionais. Corroborando com o assunto, a socióloga Marcela Castro reforçou que, a médica, ao expressar tais opiniões, desrespeitou a lei e também contribui para perpetuar a cultura do estupro e aumentar o trauma da vítima.

“Às vezes, o médico coloca a religião e a crença pessoal acima da ciência. Muitas vítimas acabam ficando nas mãos desses profissionais e, infelizmente, alguns agem dessa maneira, desencorajando a vítima e a família. Este desencorajamento gera um grande impacto, especialmente quando combinado com a falta de informação da mulher ou da família envolvida. Em alguns casos, as mulheres acabam prosseguindo com a gravidez devido a esses entraves”, afirma a socióloga.

Outro aspecto crítico é a burocracia excessiva. Muitas vezes, as mulheres são obrigadas a provar a violência sofrida por meio de boletins de ocorrência e outros documentos, num processo que já é emocionalmente desgastante. Essa burocracia não só dificulta o acesso ao direito garantido por lei, mas também contribui para a perpetuação de uma trajetória ilegal e prejudicial.

Mais casos de violência ou maior busca por justiça pelas mulheres?

Ao longo de 19 anos, o Serviço de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS) no Piauí registrou um total de 231 casos de mulheres grávidas como resultado de estupro. Desses, 51 resultaram em aborto legal, enquanto 129 optaram por iniciar o pré-natal. As outras 34 mulheres não retornaram para acompanhamento e 14 desistiram do aborto.

Desde 2004, observa-se um crescimento contínuo no número de mulheres que procuram ajuda após sofrerem violência sexual. Nos últimos três anos, foi registrado um aumento de 33% nos atendimentos, saindo de 714 em 2020 para 951 em 2023.

A delegada Nathália Figueiredo, responsável pelo Núcleo de Feminicídio do DHPP, atribui o aumento nas denúncias à maior disposição das mulheres em relatar os abusos sofridos.

“Embora ainda estejamos distantes do cenário ideal, o crescimento no número de denúncias não implica automaticamente em um aumento dos casos de violência. É importante reconhecer que isso reflete a crescente coragem das mulheres em buscar ajuda e justiça”, destacou a delegada.

Fonte: O Dia
Emelly Alves
Eric Souza